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Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

NA CASA DAS MÁQUINAS

Imagem daqui.



"O MECÂNICO

Ao perguntarem a Picasso qual o seu método de trabalho ele respondeu

- Em primeiro lugar sento-me

e quando se espantaram

Não sabia que você pintava sentado

Picasso explicou

- Não, não, eu pinto em pé.

É mais ou menos nessa situação em que me encontro agora, eu que arranjei uma mesa alta e desde o último romance escrevo em pé. Estou para aqui sentado, à espera, a viver o período estranho e como que mágico em que o livro, quase apesar de mim, se começa a formar sozinho, filamentos vagos que se aproximam, substantivos casuais flutuando ao acaso por aqui e por ali, cheiros, vultos ora sombra ora luz, coisas sem importância que aumentam e afinal não coisas, o que escutei, o que vivi, o que adivinho. Em agosto terminei Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo e faço tenções de iniciar este em dezembro: esquisito, este: nunca me acontecera antes um romance desatar a dar-me pontapés na barriga sem haver acabado o parto anterior, e mais esquisito ainda porque nunca tão-pouco me acontecera ser fecundado de fora para dentro na sequência de uma história verdadeira que um médico me contou. (...)

- Vou comunicar-lhe um episódio que talvez lhe interesse

ocupou o lugar à minha frente e entregou-me a aventura de amor mais desgarradoramente bela que alguma vez escutei. Isto em junho, e desde então não há momento em que as palavras dele me não persigam, ampliando-se, diminuindo, alterando-se, rearranjando-se de diversas maneiras, desafiando (...)

e partindo de novo, divertidas, numa gargalhadinha de escárnio, enquanto eu arredondava o Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo fingindo não dar por isso e prevenindo à socapa a gargalhadinha

- Já vais ver.

O facto é que desconheço se a gargalhadinha vai ver. Do ponto de vista técnico o que o Pedro me ofereceu é um material muito difícil, exigindo uma delicadeza de mão que ignoro se possuo, uma tal intensidade de emoção que tem de ser trabalhada por trás, em finuras de relojoeiro, uma densidade afectiva que requer uma escrita no mínimo hialina. Se calhar estou a maçar-vos com esta conversa, mas pensei que talvez não lhes desagradasse espreitar a oficina. Os produtos saem para as livrarias sem que os leitores conheçam onde e como são feitos, na confusão de uma bancada de arames de períodos, parafusos ao acaso de adjectivos pelo chão, capítulos inteiros no balde dos desperdícios e cá o rapaz a sair de baixo do romance como o mecânico de sob um carro de motor aberto, com os bolsos cheios de chaves inglesas de canetas, sujo do óleo dos períodos por ajustar e da fuligem de bielas das vivências insuficientemente limpas. Tanto esforço por uma vírgula, um verbo. Tanto obscuro sistema eléctrico que resiste. Tanta incerteza. Tanta aflição. Tanta alguma alegria. Não mostro as etapas intermédias, não falo nelas (...). Mas por enquanto estou sentado, reunindo chapas, tubos, canos, procurando, naquele monte acolá, no ângulo da memória onde as peças se armazenam, pegando-lhes, observando-as, rejeitando-as, dobrando e esticando os dedos

- Serei capaz?

- Serei capaz de ser capaz?

e só ao ter a certeza de não ser capaz, só quando o desafio me parecer perdido irei tentar contrariá-lo. (...)"

António Lobo Antunes, Terceiro Livro de Crónicas, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2006, pp. 39-41.

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