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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

FERNÃO MENDES PINTO E A «PEREGRINAÇAM»

Agenda 2011 da Imprensa Nacional Casa da Moeda, dedicada à obra Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto.
Imagem daqui.



A GEOGRAFIA DA PEREGRINAÇÃO
As viagens relatadas por Fernão Mendes Pinto cruzam uma vasta geografia que se estende da Índia ao Japão, numa sucessão de mares, rios, vilas, cidades e reinos que desenham um intrincado mapa de múltiplas rotas. Mas a obsessão descritiva do autor não se limitou ao roteiro da sucessão de terras e aproxima o olhar da minúcia dos lugares, quer se trate das maravilhas da natureza, quer da deslumbrante obra do homem: palácios, muros, hospedarias, templos, jardins, campos lavrados. À semelhança de outros relatos da época, a Peregrinação inclui extensas informações sobre as terras e os homens, cumprindo uma grelha descritiva na perspectiva do conquistador, que inclui a situação geográfica, os mantimentos cultivados, as riquezas apetecidas pelos europeus, a organização administrativa e militar, as principais cidades e fortificações, a disposição dos habitantes.


O BOM GOVERNO DA CHINA
A viagem de Fernão Mendes Pinto e seus companheiros pelo interior da China ocupa a parte central da Peregrinação, sendo um dos episódios mais conhecidos da obra. À medida que o barco avança, o narrador descreve o aproveitamento e a abundância dos campos, o movimento comercial dos portos (tantos navios que parecem uma cidade flutuante), a magnificência das construções e, em especial, os muros que envolvem as cidades e as protegem dos malefícios exteriores. Ao chegar a Pequim, os cativos admiram a protecção de pobres e enfermos, assim como o bom funcionamento da justiça, apresentada como um sistema de muita humanidade que serve para provar que o homem pode construir um lugar melhor e mais justo, tarefas que Fernão Mendes Pinto não se cansa de apontar como missão cristã.


JAPÃO, A TERRA PROMETIDA
Na Peregrinação a imagem do Japão ocupa um lugar especial enquanto «nova terra», espaço propício à projecção do desejo de realização utópica característico das chegadas aos novos mundos. Fernão Mendes Pinto diz-se um dos primeiros portugueses a chegar ao Japão e reproduz alguns dos episódios mais conhecidos deste primeiro encontro, como a história da espingarda oferecida ao rei do Bungo. A condição de terra prometida vai sendo construída através das tempestades que, miraculosamente, ora empurram os portugueses para a descoberta das ilhas, ora os impedem de ali chegar como castigo pela cobiça, ora representam o superior sinal de Deus por meio da intervenção de Francisco Xavier que amaina os elementos em fúria.


OS MELHORES REINOS QUE HÁ EM TODO O MUNDO
A sequência dos 226 capítulos que formam a Peregrinação é dominada pelos movimentos de partidas e chegadas das constantes viagens por terra e por mar. Mas estas deambulações são, em muitos casos, determinadas por acidentes que levam Fernão Mendes Pinto por rotas inesperadas e o fazem testemunhar histórias locais. Tal acontece com brutais campanhas que o rei de Burma move aos reinos próximos, num extraordinário relato dos jogos de guerra. Fernão Mendes Pinto envolve-se de novo nas guerras que opõem o rei de Java ao rei de Passarvão, apresentado como exemplo do bom rei por oposição ao tirano de Burma. Chega depois ao Sião onde assiste às exéquias do rei envenenado pela rainha e, por fim, à tomada de Odiá pelo rei de Burma a que se seguem tremendas crueldades. As guerras que testemunha aguçam a cobiça do soldado-cristão que sonha com a fácil conquista destes reinos de grandeza, abastança, riqueza e fertilidade.


O CALAMINHÃO, SENHOR DO MUNDO
A viagem ao Calaminhão é um dos episódios que tem suscitado maior curiosidade pela novidade das descrições que parecem antecipar as técnicas realistas dos romances oitocentistas. Chegados à cidade de Timplão, metrópole do reino, Fernão Mendes Pinto e os companheiros atravessam «grande cópia de ruas muito compridas» e entram no primeiro terreiro das casas do Calaminhão. Fernão detém-se na minuciosa descrição dos espaços interiores, apresentados à medida que se cruzam pátios, atravessam salas, sobem escadas, passam corredores, até chegar «a uma grande casa, a qual neste tempo tinha as portas cerradas». O efeito de suspensão e mistério é adensado pela minuciosa exposição dos rituais que antecedem a abertura das portas, logo fechadas após a entrada da embaixada dos portugueses, deixando o leitor partilhar a visão de um grande jardim em que reconhecemos os tópicos essenciais da representação do paraíso terrestre.


A VIAGEM DAS LÍNGUAS
Peregrinação constitui um extraordinário repositório das «dicções alheias», como lhe chama o gramático quinhentista Fernão de Oliveira. Ao longo da narrativa, vão aparecendo reproduções de frases, como o autor as ouve, seguidas das «declarações» em português, o que serve o efeito de verosimilhança. Mas a imitação das línguas exóticas é também alcançada através de um estilo perifrástico e metafórico utilizado nos discursos das personagens orientais. As vozes orientais chegam a ocupar capítulos inteiros, servindo a ilusão exótica, ao mesmo tempo que servem as mais duras críticas aos comportamentos dos cristãos portugueses. Todos estes processos contribuem para a originalidade da Peregrinação e ensaiam precocemente formas de escrita romanesca.

Agenda Peregrinaçam 2011, Textos de Ana Paula Laborinho, Ilustrações de Carlos Marreiros, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010.


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