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Escola Secundária José Saramago - Mafra

terça-feira, 15 de setembro de 2015

DO PROFESSOR PARA O ALUNO

Robert Doisneau, Hier c'était la rentrée. Daqui.



"Os eixos do tempo cruzam-se e voltam a cruzar-se. O que significa transmitir (tradendere) e de que modo - de quem para quem - é legítima tal transmissão? As relações entre traditio ("o que foi transmitido") e aquilo a que os Gregos chamavam paradidomena ("o que é transmitido neste momento") nunca são transparentes. Talvez não seja por acaso que, semanticamente, "traição" e "transmissão" não estejam assim tão dissociadas de "tradição". Em contrapartida, estas vibrações de sentido e de intenção encontram-se fortemente presentes no conceito, igualmente complexo, de "tradução" (translatio). Será o acto de ensinar, num qualquer sentido fundamental, um exercício que tem lugar nas entrelinhas, como sustentou Walter Benjamin quando atribuiu virtudes eminentes de fidelidade e de transferência ao interlinear? (...)

O verdadeiro ensino tem sido definido como imitatio de um acto de revelação transcendente ou, mais precisamente, divino - esse desvelar e interiorização de verdades que Heidegger atribui ao Ser (aletheia). O ensino secular, elementar ou avançado, mimetiza um modelo sagrado, canónico, um original que era, através de leituras filosóficas e mitológicas, comunicado oralmente.O professor não é mais - nem menos - do que um ouvinte e mensageiro cuja inspirada, e posteriormente instruída, receptividade lhe permitiu aprender um Logos revelado, essa "Palavra primordial", o que constitui, na essência, o modelo de validação do Mestre da Tora, do explicador do Corão ou do comentador do Novo Testamento. Por analogia - e são inúmeras as perplexidades que emergem da utilização do análogo -, este paradigma estende-se à comunicação, à transmissão e à codificação do conhecimento secular, de sapientia ou Wissenschaft. Nos Mestres da exegese bíblica encontramos já ideais e práticas que serão adaptados à esfera secular. Assim, Santo Agostinho, Akiba e Tomás de Aquino são incontornáveis em qualquer história da pedagogia.

Em contrapartida, tem-se defendido que a única forma honesta, verificável, de ensino, de autoridade didáctica, é por meio do exemplo. O professor demonstra ao aluno o seu próprio domínio da matéria, a sua capacidade de realizar a experiência química (...), de resolver a equação no quadro, de desenhar com exactidão o modelo de gesso ou de carne e osso no atelier. O ensinamento por meio do exemplo é acção, e pode ser silencioso. Talvez devesse sê-lo. A mão do professor guia a do aluno no teclado do piano. O ensinamento válido é ostensível. Vê-se. Esta "ostentação", que tanto intrigou Wittgenstein, está profundamente implantada na etimologia: o dicere do latim, que começou por significar "mostrar" e só posteriormente "mostrar dizendo"; os termos token e techen do inglês médio, com as suas conotações implícitas de "aquilo que mostra". (Será o professor, em última análise, um "actor"?) Em alemão, deuten, que significa "indicar", é inseparável de bedeuten, "significar". Esta contiguidade leva Wittgenstein a negar a possibilidade de qualquer instrução textual honesta na filosofia. No que respeita à moralidade, só a conduta real do Mestre constitui demonstração válida. Sócrates e os santos ensinam por meio da sua simples existência. (...)"

George Steiner, As Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 12-13.



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