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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 10 de julho de 2014

SALOMÃO

William Blake (1757-1827), O Julgamento de Salomão (1799-1800)
Imagem daqui.




"E pois nomeámos o mais sábio de todos os homens, e o mais opulento, e delicioso de todos os Reis, ele nos dirá o verdadeiro conceito que fez, e nós devemos fazer dos bens do mundo. «Eu me resolvi», diz Salomão, «a me dar a todas as delícias, e gozar todos os bens desta vida»: Dixi ego in corde meo, vadam, et affluam deliciis, et fruar bonis (Ecl 2,1). Com este pressuposto querendo, podendo, e sabendo fazer quanto quisesse, porque ninguém pôde tanto, nem quis mais, nem soube melhor que Salomão, vede o que faria. Fabricou um Palácio real em Jerusalém, que depois do Templo que ele edificara foi o segundo milagre; no monte Líbano traçou vários retiros, e casas de prazer, em que de mais de se ver junto todo o raro, e curioso do mundo, a amenidade dos jardins, a frescura das fontes, a espessura dos bosques, a caça, e montaria de aves, e feras, e até as sombras no verão, e os Sóis no inverno excediam com a arte a natureza; o trono de marfim em que dava audiência, e a carroça chamada Férculo, em que passeava, eram de tal arquitetura, e preço, que faz particular descrição deles a Escritura; às galas de Salomão o mesmo Cristo lhes chamou glória; os tesouros de ouro, e prata, que ajuntou, eram imensos; os gados maiores, e menores, que naquele tempo também eram riquezas dos Reis, não tinham número; os cavalos estavam repartidos em quarenta mil presépios; a sumptuosidade da mesa, para a qual concorriam diversas Províncias, e a majestade, grandeza, e ordem dos Oficiais, e Ministros, com que era servido, foi a que encheu de pasmo a Rainha Sabá; as baixelas, e vasos eram de ouro, as músicas de vozes esquisitas de ambos os sexos, e os cheiros, e aromas com que tudo recendia, quanto cria, e exala o Oriente. Não falo na qualidade, e gentileza das Damas, filhas de Príncipes, e escolhidas em diferentes nações, entre as quais só as que tinham nome, e estado de Rainhas, eram sessenta, servidas todas com aparato, e magnificência Real. Tudo isto gozava Salomão em suma paz, e com igual fama, sem inimigo, ou receio que lhe desse cuidado, e em tudo se empregava com tal aplicação, e excesso, que ele mesmo confessa de si que «nenhuma coisa viram seus olhos, nem inventaram seus pensamentos, nem apeteceram seus desejos, que lhe negasse»: Omnia quae desideraverunt oculi mei non negavi eis, nec prohibui cor meum quin omni voluptate frueretur (Ecl 2,10). Estando pois nestas felicidades de Salomão, não só recompilados, mas estendidos todos os bens do mundo, saibamos por fim que conceito fez deles. Ele o diz, e em bem poucas palavras: Cum me convertissem ad universa opera, quae fecerunt manus meae, et ad labores in quibus frustra sudaveram, vidi in omnibus vanitatem, et afflictionem animi (Ibidem, 11): «Voltando os olhos a tudo quanto tinha feito, em que debalde tinha trabalhado, e suado» («feito» diz, e «trabalhado», e «suado», e não «gozado», porque tudo o que gozou foi «debalde», frustra) «e o que vi, e achei em tudo, é que tudo é vaidade, e aflição de ânimo»: Vanitatem, et afflictionem animi. Logo se todos os bens do mundo são vaidade, como podem ser verdadeiros bens? E já que lhes concedamos o nome de bens; se todos causam aflição do ânimo, como podem ser bens sem mistura de males?"

Padre António Vieira, "Sermão da Segunda Dominga da Quaresma", in Obra Completa do Padre António Vieira, direção de José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Círculo de Leitores, 2013, Tomo II, Volume II, pp.59-60.


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