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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

AS MÃOS E O ESPÍRITO

 
Leonardo da Vinci, Estudo de Mãos
Imagem daqui.
 
 

“Através dos milénios, a linguagem tornar-se-á um tão importante instrumento, que, quando a criança hoje aprende a falar, aprende ao mesmo tempo, sem que a gente dê por isso, toda uma maneira de conceber o mundo. «Uma maneira de conceber o mundo», disse eu. A própria palavra maneira deriva da palavra mão. Por meio da linguagem manejamos um sistema complicado de classificação e de relacionação das coisas. Há mesmo quem tenha definido a ciência moderna, com a sua estrutura matemática, como não passando de uma linguagem bem feita. (…)

A tradição oral é muito anterior e muito mais importante historicamente do que a literatura escrita. E, no entanto, a escrita foi mais uma grande conquista, uma forma superior de manusear as coisas: evoluindo lentamente a partir do simples desenho, a escrita tornou-se um conjunto de sinais que correspondem às palavras, que já eram sinais de coisas. A escrita fonética é feita, portanto de sinais de sinais. Sob certo aspecto, pode portanto dizer-se que o espírito humano agarra cada vez mais de longe os objectos materiais, mas isso quer dizer que os agarra melhor, mais planeadamente, numa conjunção mais eficaz, e social, da inteligência e da acção. (Deixem-me observar, entre parêntesis, que as palavras que designam certos elementos do pensamento, tais como conceito, compreensão, provêm de radicais latinos que significam agarrar, prender, e outras acções manuais.) (…)

Ninguém hoje contesta, julgo eu, que estamos perante uma nova crise nas relações entre o cérebro e a mão do homem. Mais uma vez, a mão cresceu e qualificou-se de tal modo, que o espírito humano, ou pelo menos certas formas do espírito humano, perderam o controlo sobre elas. De nada serve cobrir a máquina de apóstrofes, culpar a máquina de todos os males que sofremos. Nem sequer se pode dizer que os problemas postos pela máquina resultem de um pretenso domínio da matéria sobre o espírito, pois a máquina não é matéria bruta; a máquina representa uma vitória do espírito sobre a matéria, é uma criação, um produto do homem. A palavra máquina vem mesmo de uma palavra em Latim que significa, propriamente, estratagema, artimanha, ou plano. A máquina resulta de um estratagema do espírito destinado a vencer a matéria, graças ao uso consciente das próprias leis da matéria. A máquina é uma humanização da matéria (…).”
Óscar Lopes, As Mãos e o Espírito, Porto, Campo das Letras, 2007, pp.33-61.

Dos Editores: “Com esta nova edição de As Mãos e o Espírito, texto de uma lição tão particularmente significativo na vida e na obra do seu autor, assinalamos o 90º aniversário de Óscar Lopes, de cuja obra nos orgulhamos de ser editores.”

 

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