Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs

Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian
Escola Secundária José Saramago - Mafra

segunda-feira, 24 de junho de 2013

OS ALFERES


Imagem daqui.
 
 
Era um compartimento de tabiques de contraplacado, situado num dos extremos das camaratas. Depois da movimentação daquelas horas, apreciei o sossego, a quietude penumbrosa do sítio, onde nem os insectos buliam. Uma cobertura de ráfia, rota e tisnada, pregada lá em cima, junto ao forro de madeira, vinha tapar a janela até à meia altura em que, empilhado do lado de fora, um montão de sacos de areia lhe ajudava a roubar a luz.
Ao meu lado direito, sobrepunham-se dois beliches. Estendido no soalho, na minha frente, sem mais espaço, um colchão, já aparelhado de lençóis e almofada, branquejava na escuridão ambiente. Manta não era precisa, naquele calor. A um canto, debaixo da janela, e obviamente arredada para me dar espaço ao colchão, oscilava uma espécie de estante metálica, com duas prateleiras acanhadas, que devia servir habitualmente de mesa-de-cabeceira. Num resto de chão, o meu saco, torcido e corcovado…
O bom remanso que por ali ia… Naquele negrume, as vozes e os ruídos do aquartelamento soavam distorcidos, confusos, distantes, acentuando a impressão de conchego do sítio, pese o miserabilismo dos trastes.
Logo me ocorreu estender-me um bocado, a fazer horas, numa relaxação do espírito. Ensaiei um passo, tenteando um equilíbrio difícil por sobre o colchão. Mas logo me detive: estava alguém ali dentro. Eu tinha companhia. Lerdamente, um vulto emergia do beliche de baixo, passava desajeitadamente pelo espaço estreito que o separava do meu colchão, dava um saltito desasado, e postava-se na minha frente, de mão estendida:
- É o alferes engenheiro, não é? Muito gosto.
Na obscuridade, eu mal lhe distinguia as feições. Notava-lha apenas a cara larga e o cabelo curto, encaracolado. Apertei-lhe a mão, mole e descaída.
- Pois, também durmo aqui… - disse sem que lhe tivesse perguntado nada. Usava uma farda de trabalho abotoada nos pulsos e no colarinho, e acenava muito com a cabeça. Num relance, distingui a cruz de latão amarelo na boina, que trazia apresilhada ao ombro. Quem havia de ser? O capelão, claro.
- Ah, padre, está bom?
- Desculpe, estava aqui um bocadinho recolhido. Esta é a melhor hora… Pouco serviço, mais sossego…
Devia sentir-se ainda estremunhado da sesta. Procurava as palavras, coçando o queixo:
- Hum, então fez boa viagem? Pois! Mas, olhe, o doutor andava aí à sua procua.
O doutor? Tinham-me instalado no alojamento do padre e do médico. Oficial forasteiro, ainda por cima de Engenharia, havia de me estar calhado o recolhimento dos párias – os «intelectuais»… Antes assim.”
Mário de Carvalho, “A última cavalgada”, Os Alferes, Porto, Porto Editora, 2013 (1ª edição 1989), pp.60-61.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário