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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 4 de abril de 2013

AO ACASO, Eça de Queirós

Astrolábio
Imagem daqui.



“Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!
Ah! Foi há muito tempo.
Era naqueles tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam para o céu as Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa uma transformação social. Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto batalhador, em nome do espírito, da alma. O papado ia morrer. (…)
Todo o Sul católico estremeceu: aquela revolta vinha imprevista e rápida: um dia a imperceptível e vasta humanidade, quando fosse uma madrugada para as suas adorações, podia encontrar a velha Roma deserta, e ao longe o Catolicismo dissipando-se com um som hierático de salmos, e um colorido vermelho de fogueiras.
Era necessário salvar o Sul. (…)
Ora durante essa luta das religiões e das pátrias, a Península, encolhida nas suas montanhas, coberta de sol, violenta, sinistro cavaleiro de Deus, armava as caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas das ilhas, dos continentes das Índias, dos cabos temerosos. Nós outros, os peninsulares, aparecíamos às outras nações como velhos lobos do mar, sempre em viagem, trigueiros, rijos como calabres, sãos como o sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios de legendas, e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao longe, perdidos nas brumas terríveis.
De vez em quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um mundo, que lá tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais e nuas sob a bênção dos padres: ali mesmo sobre a areia, ao rumor das maresias, escrevia a história trágica da sua viagem, e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo, radiosos e bons, para a banda das Índias. (…)
Escreviam-nos entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas, nos cabos tormentosos, nas florestas sagradas (…) sob as imobilidades cruas da luz: escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trémulos das iras das batalhas. Por isso enchiam as suas crónicas e os seus poemas de uma estranha prodigalidade de força e de vida. (…)
Mas eles também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões, lirismos interiores, e as saudades da pátria nasciam naquelas almas como grandes açucenas que se abrem dentro de um vaso e que o enchem. (…)
Estavam longe da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos gregos e romanos, das antigas formas rituais, das educações clássicas.
Não conheciam isto.
Mas lembravam-se sempre das cantigas da pátria, das endechas heróicas, dos romances populares, que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos embalavam, que se cantam à noite às estrelas por Sevilha e por Granada e que os mendigos diziam pelas velhas pontes dos Godos e dos Árabes. Porque o povo na Península tinha uma poesia, sua exclusivamente, que cantava nos trabalhos, com que adormecia os filhos, em que escarnecia os alcaides e celebrava os heróis. (…)
Em Portugal (…) há mais serenidade na força: o carácter português é mais parecido com o carácter italiano: os nossos sábios, os nossos viajantes, os nossos descobridores tinham mais a lucidez do tempo de Dante: as navegações são prudentes: por isso Portugal não resistiu nada à influência italiana. O renascimento da Antiguidade, a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se na Espanha mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já não acreditasse na sua epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse a fazer trotar pelos caminhos o magro D. Quixote.
Em Portugal não: o génio antigo aclimatou-se: transformou-se mesmo: perdeu o elemento vital e fecundo e ficou-lhe o elemento retórico. (…)”
Eça de Queirós, Prosas Bárbaras, Lisboa, Edição Livros do Brasil, s/d, pp.145-152.

 

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