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Escola Secundária José Saramago - Mafra

quinta-feira, 28 de março de 2013

DA SAUDADE IX

Marc Chagall, Paysage Vert (1949)
Imagem daqui.


“A saudade e o sebastianismo são as duas principais características da cultura portuguesa geralmente apontadas em textos que ensaiam uma definição do homem português (da alma portuguesa) ou, como alguns preferem dizer, da personalidade cultural portuguesa. Pensadores ligados ao movimento da filosofia portuguesa – de Sampaio Bruno, Cunha Seixas e Álvaro Ribeiro aos mais modernos como António Quadros ou Pinharanda Gomes – e mais isolados entre si como Jaime Cortesão, Magalhães Godinho, Cunha Leão, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, António José Saraiva, Joel Serrão, Manuel Antunes, Orlando Ribeiro ou Jorge Dias, por exemplo, deram, e alguns dão ainda, importantes contributos para a definição do homem português e do carácter nacional. Interessa, porém, salientar, desde já, que, a nosso ver, não é tanto a veracidade dos traços apontados que nos importa (…), mas a forma como estes espelham uma imagem que de nós próprios fomos construindo ao longo de séculos. A Saudade e o sebastianismo, então, podendo ser ou não, do ponto de vista cultural, características que, de facto, nos individualizam, são, com certeza, imagens multisseculares com as quais nos identificamos, passíveis de condicionar, por sua vez, muitas das nossas manifestações culturais. A insensibilidade a este modo de perspectivar o problema tem sido, parece-nos, a principal razão das acesas polémicas que tais temas têm suscitado.
Comecemos pela Saudade, palavra de sentido dito intraduzível dada a complexidade afectiva que pressupõe, sentimento-ideia tido como peculiar do povo português, cuja constância e persistência na cultura portuguesa tem sido atestada por numerosos críticos, sobretudo como motivo de inspiração lírica e de reflexão filosófica. Assim, descobrem-na na poesia e na prosa portuguesas com uma incidência estatisticamente superior à de qualquer outra literatura, das cantigas de amor e de amigo ao Cancioneiro Geral, não esquecendo a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro ou um Frei Agostinho da Cruz, de Sá de Miranda a Garrett, de António Nobre aos mais modernos, como Irene Lisboa, Rodrigues Miguéis ou David Mourão-Ferreira, e apontam-na como tema rico de implicações várias em textos filosóficos, principalmente portugueses e galegos, que sublinham a complexidade deste nó afectivo de difícil penetração. Lembrança, sentido de coração, paixão de alma, tristeza da separação, gosto romântico da solidão, sentimento ontológico puro, sentimento da totalidade, do desvanecido, ânsia do Ser, oscilação entre o aqui e o ali, cobiça do longe, procura de um abrigo, desejo de um bem perdido, etc., têm sido tópicos para uma definição da Saudade que ainda hoje permanece em aberto. A primeira referência irá sempre, porém, para D. Duarte que, no Leal Conselheiro, comparava a «suidade» com outras palavras afins (nojo, pesar, desprazer, avorrecimento) para concluir da sua especificidade e intraduzibilidade, e para Duarte Nunes de Leão que, seguindo os mesmos passos, tentava a primeira definição de Saudade - «Lembrança de alguma coisa com desejo dela».
Neste percurso vivencial da Saudade tem especial relevo a figura de Teixeira de Pascoaes, seu poeta por excelência. Em primeiro lugar, porque, para além de a nomear e invocar nos seus versos, a introjectou como força-motriz de todo o seu universo imaginário, modelando o clima inspirado dos seus poemas, a composição sui generis da sua linguagem, a tessitura formal, conceptual e temática da sua escrita; depois, porque, em termos filosóficos, a elevou à altura do sentimento mais perfeito do homem, fonte da sua espiritualidade, sentimento-ideia de força ascensional, aperfeiçoadora, que vai do mineral ao espiritual e que nele conhece a sua expressão mais sagrada, o seu contacto com Deus; por fim, porque, dado o contexto histórico-social do tempo, não só a defendeu como característica individualizadora do povo português, povo privilegiado, por isso mesmo, entre os outros povos, como, sobretudo, a defendeu como possível motor do ressurgimento nacional. Ao culto da Saudade, assim encarada, chamou Pascoaes simplesmente saudosismo. (…)”
Maria das Graças Moreira de Sá, “Duas palavras sobre a Saudade e o Saudosismo”, in As Duas Faces de Jano – Estudos de Cultura e Literatura Portuguesas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, pp.45-47.

 

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