Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs

Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian
Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

UTOPIA


Primeira edição de Utopia, Lovaina, 1516
Imagem daqui.
 
“Entrámos num grande aposento com as paredes de madeira. Pendia do teto uma lâmpada de luz amarelada. A mesa, por qualquer razão, intrigou-me. Na mesa havia uma clepsidra, a primeira que vi, além de uma gravura de aço. O homem indicou-me uma das cadeiras.
Ensaiei diversos idiomas e não nos entendemos. Quando ele falou fê-lo em latim. Reuni as minhas já longínquas memórias de bacharel e preparei-me para o diálogo.
- Pelo traje – disse-me -, vejo que chegas de outro século. A diversidade de línguas favorecia a diversidade dos povos e até das guerras; a Terra regressou ao latim. Há quem receie que torne a degenerar em francês, em limusino ou em papiamento, mas o risco não é imediato. De mais a mais, nem o que foi nem o que será me interessam. (…)
Atravessámos um corredor com portas laterais que dava para uma pequena cozinha onde tudo era de metal. Voltámos com o jantar numa bandeja: malgas com espigas de milho, um cacho de uvas, uma fruta desconhecida cujo sabor me recordou o do figo e um grande jarro de água. Creio que não havia pão. As feições do meu hóspede eram agudas e tinha algo de singular nos olhos. Não esquecerei esse rosto severo e pálido que não tornarei a ver. Não gesticulava ao falar.
Tolhia-me a obrigação do latim, mas finalmente disse-lhe:
- Não te assombra a minha súbita aparição?
- Não – replicou-me -, tais visitas ocorrem-nos de século em século. Não duram muito; o mais tardar estarás amanhã em tua casa.
A certeza da sua voz bastou-me. Julguei prudente apresentar-me:
- Sou Eudoro Acevedo. Nasci em mil oitocentos e noventa e sete, na cidade de Buenos Aires. Completei já setenta anos. Sou professor de letras inglesas e americanas e escritor de contos fantásticos. (…)
Numa das paredes vi uma estante. Abri um volume ao acaso; as letras eram claras e indecifráveis e traçadas à mão. As suas linhas angulosas recordaram-me o alfabeto rúnico, que, no entanto, só se empregou para a escrita epigráfica. Pensei que os homens do porvir não só eram mais altos, como mais destros. Instintivamente olhei para os longos e finos dedos do homem.
Este disse-me:
- Agora vais ver algo que nunca viste.
Passou-me com cuidado um exemplar de A Utopia de More, impresso em Basileia no ano de 1518 e em que faltavam folhas e gravuras.
Não sem fatuidade repliquei:
- É um livro impresso. Lá em casa haverá mais de dois mil, embora não tão antigos nem tão preciosos.
Li em voz alta o título.
O outro riu-se.
- Ninguém pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que levo de vida não terei passado de uma meia dúzia. Aliás não é ler que importa, mas reler.”
Jorge Luís Borges, O Livro de Areia, Lisboa, Quetzal Editores, 2011, pp. 90-92.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário