Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs

Antigo blogue do projeto novasoportunidades@biblioteca.esjs, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian
Escola Secundária José Saramago - Mafra

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)


 
Biblioteca verde

Papai me compra a Biblioteca Internacional
De Obras Célebres
São só 24 volumes encadernados
Em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança- 
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde,
Só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.

Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
Bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe: 
Quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga 
Vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiro toda verde.
Sou o mais rico menino destas redondezas. 
(Orgulho não: inveja de mim mesmo.) 
Ninguém mais aqui possui a colecção 
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo. 
Antes de ler, que bom passar a mão 
no som da percalina, esse cristal
de fluída transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas. 
Templo de Tebas, Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vénus nua... Nossa
Senhora, tem disso tudo nos livros? 
Depressa as letras. Careço ler tudo. 
A mãe se queixa. Não dorme este menino. 
O irmão reclama: apaga a luz, cretino! 
Espermacete cai na cama, queima 
A perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que pegue fogo 
na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca   
a paciência  e te dê uma sova. Dorme, 
filhinho meu, tão fraquinho.

Mas leio. Em filosofias 
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias me perco, medievo;
com contos, poemas 
me vejo viver. Como te devoro, 
verde pastagem. Ou antes carruagem 
de fugir de mim e me trazer de volta 
à casa a qualquer hora num fechar 
de páginas?

Tudo o que sei é ela que me ensina. 
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio 
de flauta-percalina eternamente.


Relembrando o escritor cento e dez anos após o seu nascimento. 


Requisite na BE a Antologia Poética.  


Sem comentários:

Enviar um comentário